Erveiras se atualizam para atender a novas tradições de religiões afro
O movimento na barraca de ervas de Elisabete Monteiro, no Mercadão de Madureira, não para, e seu celular toca sem parar. Dona do ponto no centro de comércio popular na zona norte do Rio de Janeiro, ela atende, faz a venda por telefone e depois explica à reportagem da Agência Brasil:

“Essa aqui é uma cliente que acabou de sair e esqueceu a folha de bananeira. Quer que eu leve para o Uber lá na porta do mercado, mas eu não posso, estou com muito movimento. Eu vou levar para minha casa, e ela vai buscar lá, de noite”.
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O pedido urgente da bananeira é para uma celebração prevista para aquela noite mesmo, em um terreiro de religião afro-brasileira. As folhas, nessas crenças, representam o axé, a força vital que conecta o mundo espiritual ao mundo real, sendo cada espécie usada para uma finalidade, como rituais, oferendas e banhos.
Para atender a essas religiões, Dona Rosa, a erveira mais antiga do Mercadão, mãe de Bete, reorientou a produção de verduras e hortaliças, há 50 anos. A agricultora, que veio de Portugal, aprendeu, no Brasil, com os pais e mães de santo, a plantar e colher as ervas que hoje abastecem feiras livres e bancas em toda a cidade. Hoje, a família cultiva folhas em três hortas, em Irajá, perto do Mercadão.
“Iniciamos com umbanda e candomblé [jeje], depois passamos a atender [candomblé] Ketu e Angola, e hoje temos o Ifá, que vende bem”, conta Luiza de Fátima Monteiro, a outra filha de Rosa, que é católica e comanda outra barraca da família.
Tradição que evolui
Referência para os terreiros, a família de Rosa busca se atualizar para atender a novos pedidos. São as tradições religiosas que orientam, por exemplo, a forma de plantar e colher, de acordo com os ciclos da lua, e a de secar, além da qualidade das ervas – muitas utilizadas também em cuidados de saúde.
“Os rituais religiosos são como a tecnologia, evoluem”, destaca Bete, candomblecista e frequentadora do Ifá. “Folha é a mesma coisa. Toda hora, você aprende uma magia nova, um remédio novo, sai um estudo, comprova que faz bem para uma coisa, há uma evolução”, completa.
Mais recentemente, a família passou a fornecer para o Ifá, uma filosofia que preserva saberes e práticas do povo iorubá. Para isso, foi necessário encontrar novas espécies, que não existiam no Brasil. O jeito foi comprar de viajantes vindos da Nigéria ou de Cuba.
“Nós pedimos para trazerem as mudas de lá, como as de orobô, obi, aridã e teté (caruru de mancha), que vieram com os religiosos ou de nossos clientes mesmos”, revela Elisabete. “Hoje, elas já estão dando. Nós somos um dos únicos produtores dessas plantas no Rio”, o que torna as barracas as mais procuradas.
Há alguns anos, Bete lembra que era mais fácil conseguir plantas exóticas, ou seja, de fora do Brasil, no Horto do Jardim Botânico, onde ela comprou uma muda de baobá ─ árvore considera sagrada pelas religiões afro ─ que plantou no quintal.
“Eu tenho um baobá na minha casa que é de lá [Nigéria], mas, hoje não têm mais para venda nem doação. Era importante ter, para fornecer para essas práticas”, avalia Bete. “De baobá mesmo, eu não tenho tempo de fazer, e as pessoas pedem”.
O horto do JB existe há 120 anos, mas há dez não doa mais para o público. Hoje, o órgão repassa mudas da Mata Atlântica para o poder público e ações de reflorestamento.
Uso requer cuidados
O conhecimento ancestral de erveiras, benzedeiras e curandeiras está na base de avanços científicos e presente no modo que os brasileiros cuidam da saúde. Mas, o uso de elementos da natureza, seja para fins medicinais ou rituais, deve ter acompanhamento, alerta a professora de biotecnologia vegetal, Andrea Furtado Macedo, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Ela lembra que algumas plantas, como a erva de guiné, usada em banhos de descarrego, podem causar dermatites.
“Se tomar banho de Guine, não pode se expor ao Sol, para evitar queimaduras”, alerta.
“O Brasil é um grande caldeirão quente em termos de inovação, porque temos tanto a diversidade biológica, quanto social, fruto do conhecimento de imigrantes [europeus], africanos, populações indígenas, ribeirinhas, caiçaras, então, sim, é possível fazer uso de plantas medicinais, mas com cuidado”, reforça Andrea.
A pesquisadora desaconselha a automedicação e destaca o risco de efeitos colaterais e intoxicação.
“As plantas podem fazer bem, como podem fazer mal”, diz. “Elas podem interagir com medicamentos que a pessoa já faça uso, podem provocar reações adversas e ser até fatais”, adverte.
Para ela, acreditar na ciência é a melhor forma de se proteger desses problemas. “Muitas plantas medicinais ainda não passaram por todas etapas da pesquisa científica, incluindo testes clínicos, apesar da importância do conhecimento etnofarmacológico, ainda há muita adulteração”, informa.
Andrea dá como exemplo a erva espinheira-santa. “O uso dela é comprovado para combater gastrite, úlcera, mas é difícil encontrar a espécie verdadeira à venda”.
As recomendações de uso, mesmo ritual, devem ser feitas por quem conhece as plantas. Nos terreiros, por exemplo, por ialorixás e babalorixás, explica Mãe Nilce de Iansã, coordenadora da Rede nacional de Religiões Afro-Brasileiras (Renafro).
A Renafro acrescenta que os usos das folhas para cuidados de saúde, como banhos, sejam reconhecidos como Práticas Integrativas e Complementares de Saúde (PIC), pelo Sistema Único de Saúde (SUS). As abordagens terapêuticas incluídas nas PIC têm objetivo de prevenir e promover a saúde. O Ministério da Saúde já oferece 29 dessas práticas. Entre elas, reiki, homeopatia, yoga e a acupuntura.
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